Má cicatrização de cirurgia estética por característica do paciente isenta o médico de culpa

RECURSO ESPECIAL Nº 1.180.815 – MG (2010/0025531-0)

RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI
RECORRENTE : FERNANDA DE SOUZA PANTA
ADVOGADO : SILVIO DE ASSIS MARINHO FILHO
RECORRIDO : CARLOS FERNANDO HUDSON NASCIMENTO
ADVOGADO : IVAN GUIMARÃES POMPEU E OUTRO(S)

EMENTA

RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. ERRO MÉDICO. ART. 14 DO CDC. CIRURGIA PLÁSTICA. OBRIGAÇÃO DE RESULTADO. CASO FORTUITO. EXCLUDENTE DE RESPONSABILIDADE.

1. Os procedimentos cirúrgicos de fins meramente estéticos caracterizam verdadeira obrigação de resultado, pois neles o cirurgião assume verdadeiro compromisso pelo efeito embelezador prometido.

2. Nas obrigações de resultado, a responsabilidade do profissional da medicina permanece subjetiva. Cumpre ao médico, contudo, demonstrar que os eventos danosos decorreram de fatores externos e alheios à sua atuação durante a cirurgia.

3. Apesar de não prevista expressamente no CDC, a eximente de caso fortuito possui força liberatória e exclui a responsabilidade do cirurgião plástico, pois rompe o nexo de causalidade entre o dano apontado pelo paciente e o serviço prestado pelo profissional.

4. Age com cautela e conforme os ditames da boa-fé objetiva o médico que colhe a assinatura do paciente em “termo de consentimento informado”, de maneira a alertá-lo acerca de eventuais problemas que possam surgir durante o pós-operatório.

RECURSO ESPECIAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino e Vasco Della Giustina votaram com a Sra. Ministra Relatora. Ausente, ocasionalmente, o Sr. Ministro Massami Uyeda.

Brasília (DF), 19 de agosto de 2010(Data do Julgamento).

MINISTRA NANCY ANDRIGHI, Relatora

RELATÓRIO

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relatora):

Cuida-se de recurso especial interposto por FERNANDA DE SOUZA PANTA, com fundamento no art. 105, inciso III, alínea “a”, da Constituição Federal, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais.

Ação: de indenização por danos morais e estéticos ajuizada em face de CARLOS FERNANDO HUDSON NASCIMENTO. Alega a recorrente, em síntese, que foi submetida a procedimento cirúrgico estético (mamoplastia de aumento e lipoaspiração) e que, em razão da imperícia do médico recorrido, contudo, apresentou grandes lesões proliferativas – formadas por tecidos de cicatrização – nos locais em que ocorreram os cortes para a operação (e-STJ fls. 5/44).

Sentença: julgou parcialmente procedente a ação, a fim de condenar o recorrido ao pagamento de danos morais no valor de R$ 10.000,00, bem como ao custeio de cirurgia plástica reparadora das cicatrizes, sob o fundamento de que “há se falar (sic) em ato ilícito praticado pelo requerido, uma vez ter sido ele o causador das cicatrizes decorrentes da cirurgia realizada na autora”(e-STJ fls. 322/333).

Acórdão: o TJ/MG deu provimento ao recurso de apelação interposto pelo recorrido (e-STJ fls. 343/371) e julgou prejudicado o recurso de apelação interposto pela recorrente (e-STJ fls. 389/402), nos termos da seguinte ementa (e-STJ fls. 432/463):

CIRURGIA ESTÉTICA – INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS, ESTÉTICOS E MATERIAIS – QUELÓIDES – RESPONSABILIDADE CIVIL – CULPA – CASO FORTUITO. A cirurgia plástica é uma obrigação de resultado; por isso, deve o médico-cirurgião zelar por garantir a obtenção do resultado prometido ao paciente, salvo a ocorrência de caso fortuito. Atua com cautela e segurança o cirurgião plástico que informa à paciente os riscos da intervenção estética e dela colhe o ‘ciente’ por escrito, dando a conhecer à pessoa as conseqüências ou decorrências do procedimento que será efetuado. Considera-se caso fortuito ou força maior o acontecimento, previsível ou não, que causa danos e cujas conseqüências são inevitáveis.

Recurso especial: interposto pela autora, alega violação dos arts. 6º, VIII e 14 do CDC, bem como aos arts. 186 e 927 do CC/02. A necessidade de reforma do acórdão proferido pelo TJ/MG, em seu entender, estaria justificada pela “interpretação equivocada de uma excludente, caso fortuito” e também pelo fato “inquestionável de que os atos praticados pelo Recorrido no corpo da Recorrente, foram de cunho eminentemente estético, uma cirurgia plástica e uma lipoaspiração (…). nos presentes autos não se discute a existência ou não de ato ilícito, mas, diante da responsabilidade objetiva que pesa sobre o recorrido, basta a Recorrente demonstrar as deformidades sofridas na cirurgia plástica feita pelo Recorrido, pois nos termos do art. 14 do CODECON, ele responde pela reparação independente de culpa.” (e-STJ fls. 480/492).

Juízo de admissibilidade: o TJ/MG admitiu o recurso especial, com fundamento na alínea “a” do permissivo constitucional, remetendo os autos ao STJ (e-STJ fls. 506/508).

É o relatório.

VOTO

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relatora):

Cinge-se a controvérsia a determinar se a ocorrência de caso fortuito é capaz de afastar o dever do médico de indenizar pelos danos estéticos causados por cirurgia plástica.

I – Admissibilidade do recurso especial

Embora o acórdão recorrido não tenha feito referência expressa aos arts. 186 e 927 do CC/02 e 14 do CDC, esse fato não afasta a conclusão de que o TJ/MG tinha em vista a discussão que se apresenta neste recurso. A matéria controvertida foi debatida e apreciada no Tribunal de origem, de maneira que quanto a ela restou preenchido o requisito do prequestionamento, conforme a inteligência da Súmula 282 do STF e diversos precedentes do STJ (REsp 1138101?RS, 4ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe de 19/10/2009 e AgRg nos EDcl no REsp 678.851/RS, 3ª Turma, Rel. Min. Des. convocado do TJ/BA Paulo Furtado, DJe de 19/11/2009, entre outros).

A questão da inversão do ônus da prova, contudo, não foi nem mesmo mencionada pelo acórdão recorrido, de modo que o art. 6º, VIII, do CDC não foi prequestionado. Por essa razão, este recurso especial não poderá abordar sua violação, já que com relação a essa norma incide o óbice das Súmulas 282 e 356, ambas do STF.

II – O caso fortuito como excludente da responsabilidade do cirurgião plástico

A recorrente, ao sustentar a necessidade de reforma do acórdão proferido pelo TJ/MG, afirma que “é bem verdade que tanto o Código Civil quanto o § 4º do art. 14 do CODECON, estabelece regras para os profissionais liberais, MAS, JÁ É UNÂNIME NESTA AUGUSTA CORTE QUE QUANDO SE TRATA DE CIRURGIA PLÁSTICA DE CUNHO EXCLUSIVAMENTE EMBELEZADOR, COMO O CASO DA RECORRENTE, CUIDA-SE DE OBRIGAÇÃO DE RESULTADO, E POR ISSO A RESPONSABILIDADE É OBJETIVA” (e-STJ fl. 488 – destaques no original).

De fato, grande parte da doutrina e da jurisprudência – inclusive desta Corte – defende o entendimento de que a obrigação assumida pelo médico nas hipóteses em que realiza cirurgia plástica para fins exclusivamente estéticos é de resultado, e não de meio.

Ocorre que, ao contrário do que alega a recorrente, o simples fato de a obrigação ser de resultado não torna objetiva a responsabilidade do recorrido. Nos termos do art. 14 do CDC, continua havendo a necessidade de comprovação da culpa do médico para surgimento do dever de indenizar. Assim, nas obrigações de resultado, como na cirurgia plástica embelezadora, a responsabilidade do profissional da medicina permanece subjetiva, mas transfere para o médico o ônus de demonstrar que os eventos danosos decorreram de fatores externos e alheios à sua atuação durante a cirurgia. Segundo ensina Sérgio Cavalieri Filho, “em conclusão, no caso de insucesso na cirurgia estética, por se tratar de obrigação de resultado, haverá presunção de culpa do médico que a realizou, cabendo-lhe elidir essa presunção mediante prova da ocorrência de fator imponderável capaz de afetar o seu dever de indenizar” (Programa de Responsabilidade Civil. 7ª Ed. São Paulo: Ed. Atlas, 2007, p. 370).

Incumbia ao recorrido, portanto, fazer prova da circunstância que fosse capaz de elidir sua responsabilidade pelos danos alegados, o que efetivamente logrou produzir, nos termos do acórdão recorrido: “o laudo pericial é suficientemente seguro para afirmar a ausência de qualquer negligência do cirurgião/primeiro apelante” (e-STJ fl. 459).

Eventual responsabilidade do médico, além do mais, somente surgiria da falha e não do fato do serviço. Isso porque a teoria do risco integral não é aplicável à espécie em discussão: a responsabilidade do recorrido não desponta da mera existência do dano. Assim, consoante o entendimento manifestado pelo acórdão recorrido, mesmo que a responsabilidade do cirurgião plástico sobre os danos causados pelo procedimento cirúrgico fosse considerada objetiva, o dever de indenizar poderia ser afastado se restasse comprovado que o resultado indesejado decorreu de caso fortuito, ou seja, de “acontecimento, previsível ou não, que causa danos e cujas conseqüências são inevitáveis” (e-STJ fl. 460). Esse imprevisto, por sua vez, torna inexistente o nexo de causalidade entre o dano estético e a conduta do médico, que prestou o serviço de forma regular.

Embora o CDC não faça referência expressa ao caso fortuito como excludente da responsabilidade pelo fato do produto ou serviço, é certo que “a eximente do caso fortuito ou da força maior coloca-se no mundo fenomênico e não será nenhuma disposição normativa que irá suprimi-la do universo jurídico. (…) Na verdade, diante do impacto do acontecimento, a vítima sequer pode alegar que o produto se ressentia de defeito, vale dizer, fica afastada a responsabilidade do fornecedor pela inocorrência dos respectivos pressupostos” (Grinover, Ada Pellegrini et al. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 7a. Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p. 171).

Esta Corte já se pronunciou com relação à matéria, de modo a admitir a excludente de caso fortuito. Veja-se, a propósito, o posicionamento da 3ª Turma:

O fato de o art. 14, § 3º do Código de Defesa do Consumidor não se referir ao caso fortuito e à força maior, ao arrolar as causas de isenção de responsabilidade do fornecedor de serviços, não significa que, no sistema por ele instituído, não possam ser invocadas. Aplicação do art. 1.058 do Código Civil. (REsp 120.647?SP, 3ª Turma, Rel. Min. Eduardo Ribeiro, DJ de 15/5/2000)

Na espécie dos autos, tem-se que o aparecimento das cicatrizes salientes e escuras no local do corpo da recorrente no qual foi realizado o corte cirúrgico não está relacionado com a atividade do profissional recorrido. O acórdão recorrido, com fundamento no laudo pericial, foi inequívoco ao afastar o nexo de causalidade entre a conduta do recorrido e a o dano sofrido pela recorrida, já que o profissional na saúde não poderia prever ou evitar as intercorrências registradas no processo de cicatrização da recorrente. Assim, conquanto seja perfeitamente compreensível a contrariedade da recorrente, não é possível pretender imputar ao recorrido a responsabilidade pelo surgimento de um evento absolutamente casual, para o qual não contribuiu.

Após análise do conjunto probatório dos autos, o TJ/MG concluiu pela ausência de culpa do recorrido no que concerne aos danos estéticos da recorrente, afirmando que “analisando o caderno processual, não se nega que o primeiro apelante tenha observado todos os procedimentos e técnicas cabíveis na realização da cirurgia da autora e segunda apelante” (e-STJ fl. 457). A formação do chamado “quelóide”, portanto, decorreu de característica pessoal da recorrente, e não da má-atuação do recorrido. Ausente o nexo causal – mesmo considerada a obrigação de resultado do cirurgião plástico e a responsabilidade objetiva dela porventura decorrente – a única alternativa é isentar o recorrido do dever de indenizar, em que pese toda a frustração da recorrente e as consequências psicológicas que possam ser causadas por seu suposto defeito estético. Nesse sentido, o acórdão recorrido externou posicionamento que não destoa da doutrina:

Se o insucesso parcial ou total da intervenção ocorrer em razão de peculiar característica inerente ao próprio paciente e se essa circunstância não for possível de ser detectada antes da operação, estar-se-á diante de verdadeira escusa absolutória ou causa excludente de responsabilidade. (Stoco, Rui. Responsabilidade Civil e sua interpretação jurisprudencial. 1ª Ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1994, p. 162)

Logo, para a configuração da responsabilidade civil extracontratual do recorrido, seria necessário que de seus atos omissivos ou comissivos decorressem o dano experimentado pela recorrente. Conforme registra o acórdão recorrido, “há excludentes de responsabilidade civil, o que afasta o dever de indenizar, diante da situação de imprevisibilidade dos resultados de cicatrização e outros fatores genéticos” (e-STJ fl. 449). Da análise dos fatos, como considerados pelo acórdão recorrido, tem-se que inexiste essa relação de causalidade, pois ocorreu um caso fortuito – a irregular cicatrização dos cortes cirúrgicos realizados na recorrente.

III – O termo de consentimento informado

Há nestes autos, ainda, outra peculiaridade que merece atenção. Nos termos da decisão recorrida, “atua com cautela e segurança o cirurgião plástico que informa à paciente os riscos da intervenção estética e dela colhe o ‘ciente’ por escrito, dando a conhecer à pessoa as conseqüências ou decorrências do procedimento que será efetuado” (e-STJ fl. 443). Tem-se, assim, que a recorrida foi advertida sobre a possibilidade de insucesso parcial ou total da cirurgia à qual se submeteu, tendo o recorrido “explicado todo o procedimento à primeira apelada, informando-lhe sobre os possíveis riscos e complicações pós-cirúrgicas” (e-STJ fl. 457).

A conscientização da recorrente, portanto, é também de fundamental importância para o deslinde da questão ora em debate, em especial diante do comando contido no art. 6º, III, do CDC. O TJ/MG – após minucioso exame das provas produzidas durante a instrução processual – inferiu que o recorrido, ao obter da recorrente o termo de consentimento informado, agiu com a honestidade devida, alertando-a acerca de eventuais problemas que pudessem surgir durante o pós-operatório. Esta Corte já teve a oportunidade de analisar o dever de informação dos profissionais da medicina, sendo que o i. Min. Ruy Rosado de Aguiar, em uma dessas ocasiões, consignou que “(…) a obrigação de obter o consentimento informado do paciente decorre não apenas das regras de consumo, mas muito especialmente das exigências éticas que regulam a atividade médico-hospitalar, destacando-se entre elas o consentimento informado” (REsp 467.878/RJ, 4ª Turma, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ de 10/2/2003).

Não se trata, aqui, de atribuir ao “termo de consentimento informado” a capacidade de excluir o dever do médico de indenizar o paciente por danos provocados por negligência, imprudência ou imperícia. O documento assinado pela recorrida somente comprova a boa-fé que orientou o recorrido durante a relação com a paciente, enumerando os benefícios e complicações normalmente diagnosticadas na intervenção a que se submeteu a recorrente – inclusive as hipóteses de caso fortuito, que escapam ao controle da ciência médica.

É possível concluir que a recorrente, ao anuir com os termos do documento elaborado pelo recorrido, estava ciente da possibilidade de falha na cirurgia realizada e a possibilidade de maior evidência das cicatrizes, em virtude de sua maior predisposição genética e racial. Assim, não só a atuação regular do profissional retirou o nexo de causalidade entre a conduta e o resultado, como também foi cumprido o dever de colher o consentimento informado da recorrente, nos termos do art. 34 da recente Resolução CFM nº 1.931, de 17 de setembro de 2009 (Código de Ética Médica), que veda ao médico “deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa provocar-lhe dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal.”

Diante desse panorama, não vislumbro ofensa aos arts. 186 e 927 do CC/02 e 14 do CDC.

Forte nestas razões, NEGO PROVIMENTO ao recurso especial.

FONTE: SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Acesso: 20.09.2010

Sobre Robson Firmino
Robson Vitor Firmino Advogado Defensor Dativo do Conselho Federal de Medicina do Estado de São Paulo Pós-graduado em Direito Odontológico, Médico e da Saúde pelo Centro Universitário Barão de Mauá – Ribeirão Preto – SP Pós-graduado em Direito Público pelo IEC/PUC MINAS Membro da Comissão de Direito Médico e da Saúde da OAB/Ribeirão Preto – SP Membro da Comissão de Bioética, Biodireito e Biotecnologia da OAB/Ribeirão Preto – SP

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